Paraguaios querem reparação do Brasil por guerra ocorrida há 150 anos

A ferida do mais sangrento conflito militar da história do nosso continente está sendo reaberta por uma Subcomissão de Verdade e Justiça do Parlamento do Mercosul, o Parlasul.

A bancada paraguaia nesse colegiado, que também tem parlamentares brasileiros, argentinos, uruguaios e bolivianos, conseguiu instalar essa comissão com o objetivo de tentar revisar a história da Guerra do Paraguai, acusar os ganhadores de genocídio e buscar reparação financeira e um pedido de desculpas.

A Guerra da Tríplice Aliança, como é chamada no país vizinho, aconteceu entre 1864 e 1870, quando o Brasil era um império comandado por Dom Pedro II. O conflito teve como contexto o alinhamento dos países sul-americanos em lados opostos diante de uma guerra civil no Uruguai. O combate ganhou força após os paraguaios, comandados por Francisco Solano López, aprisionarem um navio brasileiro e invadirem o atual Mato Grosso do Sul em represália à invasão do Uruguai pelo Brasil.

Também invadida pelos paraguaios, a Argentina se uniu ao Brasil e aos colorados uruguaios, vencedores do conflito interno naquele país, formando a Tríplice Aliança que combateu no Paraguai. A guerra foi extremamente sangrenta. O Brasil enviou cerca de 150 mil soldados e perdeu ao menos um terço deles, além de milhares de civis no território invadido.

As perdas humanas e financeiras mais dramáticas, porém, ficaram com o Paraguai, que teve sua população masculina adulta praticamente dizimada e sua infraestrutura destruída, além de ter perdido território.

Entendendo que as consequências dessa destruição definiram um futuro de miséria para o país, políticos paraguaios articularam por anos um debate em torno de um pedido de reparação econômica, já calculada por eles em até US$ 150 bilhões.

Qual verdade?

A Subcomissão de Verdade e Justiça do Parlasul começou a se reunir em junho deste ano e já realizou cinco audiências públicas, nas quais pesquisadores paraguaios fizeram apresentações acusando Brasil, Argentina e Uruguai de manipularem a história para culpar a suposta vítima por o que teria sido uma guerra imperialista e genocida.

Até agora, todas as sessões foram realizadas no Senado do Paraguai, mas há outras previstas para até setembro, incluindo uma no Brasil, em Foz do Iguaçu (PR), em 15 e 16 de setembro.

Ouvida em 3 de junho, a historiadora paraguaia Noelia Quintana acusou os inimigos do Paraguai de terem cometido crimes de guerra e comparou o conflito ao genocídio dos armênios pelo Império Otomano (atual Turquia) na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Noelia avalia que houve “uma série de feitos consumados pelos exércitos aliados na guerra da Tríplice Aliança que são efetivamente configurados como crimes de guerra cometidos pelos estados de Brasil, Argentina e Uruguai, por seus exércitos em campanha. E que seus respectivos governos, com anuência de seus congressos, foram responsáveis diretos por esses atos e devem ser considerados como estados agressores do Paraguai”.

Convocado para a sessão de 17 de junho, o pesquisador Sixto Cáceres, afirmou que “o objetivo da subcomissão é a esperança de se obter justiça para um povo que durante anos aguardou esse momento para que se conheça a verdade de sua história”. Para ele, há “elementos suficientes para mostrar que houve genocídio”. “[Pesa sobre a Tríplice Aliança] a morte de milhares de meninos e meninas, mulheres e anciãos. Prisioneiros que se entregaram foram fuzilados, degolados, obrigador a guerrear contra seus compatriotas. E vendidos como escravos”, acusou ainda.

Os pesquisadores questionam, nas audiências, até a condição de ditador de Solano López, que foi usada pela Tríplice Aliança como uma das justificativas para a campanha militar.

Versão brasileira

Um dos principais historiadores no Brasil desse conflito continental, o professor da Universidade de Brasília (UnB) Francisco Doratioto entende que os países vencedores não devem dinheiro nem desculpas ao Paraguai.

“O discurso de que o Paraguai foi vítima nessa guerra é factualmente falso, porque eles foram o país agressor, foram eles que provocaram o conflito”, defende ele, autor do livro Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, que rebate um interpretação segundo a qual o imperialismo inglês teria sido o responsável por incitar a luta sul-americana.

“Quem começou a guerra mesmo sem declará-la, ao sequestrar o barco Marquês de Olinda e invadir o Mato Grosso, foram as tropas de Solano López, que já vinha planejando há tempos essa movimentação. Se pegamos a cronologia dos fatos, vemos que a Tríplice Aliança se formou como resposta à agressão paraguaia”, argumenta o acadêmico brasileiro. “Eles agora tentarem uma reparação porque seu país sofreu muitas perdas é quase como se a Alemanha pedisse indenização pela destruição que sofreu na Segunda Guerra Mundial”, comparou ele.

Renegociação dos tratados de Itaipu como contexto

Para Francisco Doratioto, o momento da pressão paraguaia no assunto “reparação histórica” está ligado a uma tentativa de ganhar argumentos quando se aproxima uma renegociação dos pactos de partilha da energia gerada pela Usina Hidrelétrica de Itaipu, que foi construída no rio Paraná e pertence aos dois países.

“O parlamentar paraguaio que preside essa comissão, o Ricardo Canese, dedica toda sua vida política a denunciar um suposto imperialismo brasileiro no pacto de Itaipu, o que não é real”, defende o historiador brasileiro, que viveu três anos no Paraguai em sua pesquisa para o livro. “Quando a usina foi construída [de 1975 a 1982], o Paraguai não tinha recursos nem crédito internacional, então o Brasil bancou tudo e, desde então, vem descontando em energia a dívida paraguaia no negócio, o que deixa certos políticos de lá insatisfeitos”, complementa ele.

Está marcado para 2023 a revisão do Tratado de Assunção, que definiu os termos do pagamento dessa dívida. “Pelo que foi acertado quando da construção, Itaipu não deveria dar lucro e sim produzir energia. Como o pagamento da dívida da construção acaba ano que vem, era então para a energia ficar mais barata para os dois, mas o Paraguai quer manter o preço atual para ganhar mais na divisão, já que eles não consomem metade do que é produzido e vendem o excedente para o Brasil”, afirma Doratioto, em entrevista

Os próximo passos da comissão

Ao final das audiências, a Subcomissão de Verdade e Justiça da Guerra da Tríplice Aliança deverá produzir um relatório que, tudo indica, trará os pedidos de reparação. Além de uma indenização financeira, os paraguaios pedem a devolução do que chamam de “saques”. A lista inclui um grande canhão construído pelos paraguaios com metal dos sinos das igrejas de Assunção (o que lhe rendeu o nome de O Cristiano, ou O Cristão, em português) e que foi tomado pelo Brasil como troféu de guerra.

Canhão El Cristiano

Esse relatório deverá então ser votado pelo plenário do Parlasul. Em tese, a tendência seria de derrota do texto, afinal a maioria dos votantes são dos países vencedores do conflito. Para o historiador Francisco Doratioto, porém, o resultado da votação deverá depender da ideologia dos congressistas do Parlasul.

“Há setores políticos sul-americanos que admiram regimes fortes e justificam ditadores como Solano López. É possível que parlamentares argentinos do Parlasul que sejam peronistas, por exemplo, apoiem essa tese paraguaia. Quando a presidente era Cristina Kirchner, a Argentina chegou a se desculpar com o Paraguai”, conta Doratioto.

Uma eventual condenação não obrigaria Brasil, Argentina e Uruguai a indenizar imediatamente o Paraguai, mas poderia ser usada pelo país derrotado na guerra como argumento em eventuais ações em cortes penais internacionais que tratam desses temas, como o Tribunal de Haia.

Itamaraty não se manifesta

Ministério das Relações Exteriores sobre o tema debatido nessa subcomissão do Parlasul, do qual o Brasil é membro oficial, perguntando se o país acompanha os trabalhos e se foi convidado a se manifestar.

A reportagem questionou ainda se o Brasil estaria disposto a reparar o Paraguai de alguma forma ou a pedir desculpas oficiais ao país vizinho.

O Itamaraty não havia respondido nada até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.

By João Castelano

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